“Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura.
Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino.
E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista.
Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.”
(Nelson Rodrigues)
Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino.
E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista.
Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.”
(Nelson Rodrigues)
Sou Francisco, arquiteto e sociólogo. Filho de José com Maria. Divorciado de Teresa, pai outrora orgulhoso de Iracema. Quarenta e sete anos de vida real. Hoje, completo treze de experiências virtuais. Até ontem, existiam mil motivos para celebrar esta data, mas...
Apesar de utilizar e usufruir de todos os benefícios das novas tecnologias de comunicação, de telefones celulares à internet, salve o e-mail, o Skype e o MSN, ainda assim mantive a minha paixão juvenil pela escrita e leitura dos meios impressos e dos grandes clássicos da literatura brasileira.
Para se ter uma ideia desta idolatria, vocês devem ter percebido, logo de início, que o nome de minha filha, Iracema, é uma singela homenagem ao belo romance homônimo de José de Alencar (Não conhece? Uma pena, quem sabe o Wikipedia possa iluminar seus pensamentos... Por favor, entenda-me: quero ser breve e compartilhar de uma vez por todas esse meu sofrimento digital!).
No exato momento que digito esse desabafo via Google Docs, as lágrimas inundam meu teclado cada vez que releio uma das passagens do livro, que repousa religiosamente ao lado do meu notebook, lembrando a tragédia ocorrida com Iracema (e que certamente poucos terão o prazer e a paciência de descobrir nos próximos parágrafos):
“...Além, muito além daquela serra,
que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema...
a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros
que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira...
O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia
que vestia a terra com as primeiras águas...”
que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema...
a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros
que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira...
O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia
que vestia a terra com as primeiras águas...”
Parece que foi ontem que a vi entrando toda de branco na Igreja, durante sua primeira comunhão. Ou ainda, das travessuras com suas amigas, brincando inocentemente na cama de seu quarto - preparado especialmente para ela, diga-se de passagem!
Porém, o tempo (talvez, hoje, a internet seja) é senhor da razão e Iracema cresceu rapidamente. Como sempre, fiz o possível e o impossível para atender a mais um de seus desejos: ser a primeira menina do colégio a ter um poderoso computador portátil. Sabia que chegara a hora de Iracema conhecer o mundo - do MSN, dos blogs, do Twitter, do Orkut -, sem estar debaixo de minhas asas protetoras.
No entanto, essa caminhada virtual implicava na idolatria de figuras midiáticas pra lá de duvidosas, como a tal da Bruna Surfistinha, que a deixara com um ar de Capitu, clássica personagem de um dos clássicos de Machado de Assis, comumente reconhecida pelos seus “os olhos de ressaca, como os de uma cigana oblíqua e dissimulada”.
Nesse ínterim de mudanças em tempo real, Iracema se apaixonou por um sujeito popular e de alcunha Evilásio69, mancebo bom de papo eletrônico e que prometera honrá-la virtual e presencialmente. Mas, como pressentimento de pai “tarda, mas não falha”, uma tragédia era questão de bits e bytes para se consumar...
Na última semana, alertado por alguns conhecidos “pornonautas”, investigadores desse submundo virtual masturbatório, descubro - através do senhor de todas as buscas, Google - que meu pequeno querubim (que, segundo o definitivo e palpável Aurélio, significa “criança muito linda”) foi pervertido... E o pior: tudo registrado via webcam!
Agora, Iracema é mais idolatrada do que “Eu sou Stephany (no meu Cross Fox)”, é trending topic semanal dos tuiteiros mundiais, além - é claro - de ser a estrela preferida e milimetricamente exibida, nos máximos pixels e posições possíveis, pelos sites eróticos que se multiplicam como gripe suína pela grande rede.
Afinal, onde errei? Minha dedicação para que fosse uma boa moça foi total. Paguei balé. Curso de inglês. Faculdade. Dei-lhe as roupas da moda... Eu até briguei com os meus melhores amigos para não admitir que Brás Cubas, protagonista de outro clássico de Machado de Assis, descobrira o sentido da vida.
Porém, depois da perversão digital, virtual e interativa de Iracema, repetirei eternamente - via Twitter - a célebre frase “brás-cubiana”, perfeita para os 140 caracteres permitidos, como se fosse meu mantra da eterna libertação (on-line):
"Não tive filhos, não transmiti a
nenhuma criatura o legado
da nossa miséria".
nenhuma criatura o legado
da nossa miséria".